Avançar para o conteúdo

Testemunhos: Maria Alice Inácio, 40 anos, Designer

publicado originalmente em revista Visão Online

Nasci com uma ligação profunda à música, antes mesmo de proferir as primeiras palavras. O som da guitarra clássica tocada pelo meu pai preenchia toda a casa, e mesmo após perder a audição na primeira infância, conseguia sentir as vibrações das cordas através do contacto físico. Graças à influência dos meus pais, mergulhei cedo na diversidade musical dos anos 80 e 90, participando em concertos ao vivo e ouvindo música em várias formas.

Contudo, a minha surdez agravou-se e a música perdeu o seu encanto devido à estática e interferências nos aparelhos auditivos. A frustração substituiu o prazer musical, e comecei a depender das vibrações das ondas sonoras que emanavam das gigantescas colunas de som. Descobri cedo que ouvir pela audição e sentir através do tato não são experiências semelhantes. Vai muito além, superando a própria ficção de quem não ouve e afirma compreender.

Anos depois, com a melhoria da qualidade auditiva proporcionada pela cirurgia de implante coclear na idade adulta, finalmente experimentei a singularidade do fado português. Em pequenos estúdios improvisados nas casas da cultura, senti os pêlos do meu corpo eriçarem-se perante vozes tremeluzentes, carregadas de sentimento, e a saudade expressa ao som da guitarra portuguesa. Foi a primeira vez que chorei ao ouvir fado, algo que não conseguia fazer com aparelhos auditivos. O implante coclear restituiu-me esta parte do mundo perdido, embora ainda faltasse algo para me sentir completa.

Com o segundo implante coclear no ouvido direito, mergulhei na atmosfera sonora envolvente. A experiência auditiva passou a incluir streaming de música, acesso a entretenimento com tecnologia assistiva aprimorada, e assistir a peças artísticas no Teatro da Trindade ou na Casa da Música com tecnologia de aro de indução magnética, sentindo a essência cativante e os detalhes de cada timbre e voz.

Recentemente, participei no Ibis MUSIC Silent Concert, o primeiro em Portugal a usar tecnologia de bucle magnético, que proporciona uma experiência sonora clara e nítida para utilizadores de aparelhos auditivos e implantes cocleares, além de músicas legendadas – uma experiência totalmente imersiva ao vivo. Ao chegar, fui recebida num ambiente intimista incrível, com decoração, tecnologia instalada e simpatia dos organizadores. Quando a apresentação começou, ativei a opção do T-Coil e fiquei maravilhada com a clareza do som e a experiência envolvente que me fez sentir novamente normal. Foi uma experiência espetacular e inesquecível que espero ver replicada em futuros concertos acessíveis por todo o País.

O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, celebrado na semana passada, foi um momento de reflexão sobre as conquistas, progressos e retrocessos nas áreas de Direitos, Legislação e Acessibilidade em Portugal. Este dia foi crucial para aprofundar a compreensão de quanto ainda há por fazer na construção de uma sociedade inclusiva, onde as Pessoas com Deficiência possam usufruir de todos os direitos humanos, acessibilidade imediata e liberdades fundamentais, sem as limitações estruturais que ainda persistem no país, em contravenção com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em 2006 pelas Nações Unidas.

Infelizmente, como Alice Inácio, Pessoa com Deficiência Auditiva desde os 18 meses e utilizadora de Implante Coclear Bilateral na idade adulta, tendo passado pela escolaridade regular, faculdade e, posteriormente, a nível laboral, constatei há muito que tanto o setor público como o privado não têm atendido adequadamente às necessidades das Pessoas com Deficiência Auditiva, cujo modo de comunicação é oral. A minha experiência como ativista, representante e apoiante de poucas instituições revela a falta de suportes gerais e equipamentos digitais indispensáveis, como legendas, loops magnéticos para espaços de atendimento, gabinetes de escritório e salas de reuniões. O ato de indução magnética é ideal em pavilhões de grandes dimensões, sendo extremamente útil em espaços amplos e ruidosos, onde é difícil para pessoas com perda auditiva captar claramente os sons. Este equipamento transmite os sons diretamente através de rádio-frequência para os aparelhos auditivos e implantes cocleares, tornando os sons claros e compreensíveis a nível de fala e música. A tecnologia recente do Auracast também é relevante.

Estes recursos devem estar presentes em Centros de Saúde, Hospitais, Escolas, Universidades, Serviços Públicos, Segurança Social, IEFP, Bancos, Telecomunicações, Correios, Transportes e grandes recintos de espetáculos, como a MEO Arena, e a clara informação de atribuição de produtos de apoio nos postos de trabalho das Empresas, para garantir uma integração efetiva. É preocupante o desconhecimento e a falta de ação de governantes e representantes, que não compreendem as necessidades específicas das Pessoas com Deficiência Auditiva que utilizam dispositivos de escuta e dependem de acessibilidade total. A verdadeira inclusão só será alcançada quando houver uma consciência generalizada de que o acesso digital completo e de qualidade é essencial para a participação das pessoas com deficiência auditiva em todos os quadrantes da vida.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Podemos ajudar?